Paulo Peretti Torelly (Procurador do Estado/RS e Associado do IBAP) participou da Mesa 6 do 1º Seminário de Direito Ambiental do IBAP, ministrando no final da tarde do dia 15 de dezembro palestra intitulada "Reconhecimento de garimpeiros e pecuaristas como povos e comunidades tradicionais".
Ao final de sua brilhante exposição, Torelly propôs que o IBAP subscrevesse manifesto em repúdio à iniciativa do Governo Bolsonaro no último dia 7 de dezembro de apresentar ao Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais a proposta de reconhecimento de garimpeiros e pecuaristas como “povos e comunidades tradicionais”, apresentando minuta que foi submetida ao coletivo de associados e associadas do IBAP.
Ao final, com sugestões de aperfeiçoamento pelos associados Guilherme José Purvin de Figueiredo, Sandra V. Cureau, Maximiliano Kucera Neto e Marie Madeleine Hutyra de Paula Lima, o Manifesto obteve em tempo recorde expressiva aprovação de 62 membros do IBAP, sendo 11 diretores nacionais, 8 integrantes do Conselho Consultivo e 45 associados regulares.
Leia abaixo a íntegra do manifesto e o rol de subscritores/as.
Manifesto de repúdio do
Instituto Brasileiro de Advocacia Pública
GARIMPEIROS E PECUARISTAS SÃO POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS?
A notícia, difundida no último dia 7 de dezembro, de que o Governo Bolsonaro pautou no CONSELHO NACIONAL DOS POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS (CONPCT) o reconhecimento de GARIMPEIROS E PECUARISTAS como “povos e comunidades tradicionais”, MAIS DO QUE ESTRANHAMENTO E MESMO INDIGNAÇÃO, para não falar no descaramento dos proponentes, merece REPÚDIO e uma breve reflexão acerca do papel do DIREITO CONSTITUCIONAL E DO ESTADO NA VIDA CONTEMPORÂNEA.
No mérito da questão, é sabido que o GARIMPO e a PECUÁRIA constituem atividades econômicas típicas que impactam a natureza e não raro tomam as terras dos povos tradicionais mediante esbulho e grilagem. Diante da indignação geral da sociedade a 11ª reunião do CONPCT (CONSELHO NACIONAL DOS POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS), colegiado consultivo do MINISTÉRIO DA MULHER, DA FAMÍLIA E DOS DIREITOS HUMANOS criado pelo DECRETO 8.750/2016, se limitou, neste momento, a conformar um GRUPO DE TRABALHO para “discutir procedimentos para reconhecimento de novos segmentos do Povos e Comunidades Tradicionais – PCTs”, todavia, segundo o SITE Amazônia Real: “A decisão sobre a inclusão dos garimpeiros e pecuaristas será apresentada em reunião do CNPCT (CONSELHO NACIONAL DOS POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS) em dezembro de 2022”.
Dentre o rol de povos tradicionais destacam-se os povos originários (indígenas), que vivem na e da terra antes mesmo da conquista da América pelos europeus, bem como de Caboclos, Caiçaras, Extrativistas, Indígenas, Jangadeiros, Pescadores, Quilombolas, Ribeirinhos e Seringueiros – todos eles tendo em comum o uso sustentável e não predatório da terra, em respeito às futuras gerações.
A pergunta que se coloca é como impedir a destruição do modo de vida destes povos e de seus territórios diante da grilagem pela mineração e pela pecuária, mas também por quaisquer atividades que ameacem suas culturas e identidades.
Uma tarefa que, por certo, cabe a todos que tem consciência social e não pode prescindir de pesquisadores, antropólogos e instituições legitimadas pelos POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS na formação de um consenso mínimo em termos científicos, sociais e políticos, mas que necessariamente deve partir do texto da CONSTITUIÇÃO, pelo que ficam DUAS PERGUNTAS:
(1) Como evitar a manipulação e o desvirtuamento de um conceito?
(2) Qual o sentido e o papel do DIREITO E DA CONSTITUIÇÃO diante de abusos como este pretendido pelo Governo Bolsonaro?
Não há dúvida que A MINERAÇÃO FAZ PARTE DA HISTÓRIA DO BRASIL, e, dentre tantas, as cidades históricas de Minas Gerais bem retratam tal processo de ocupação territorial, atividade que gera um passivo ambiental gigantesco, tanto no que diz respeito à geomorfologia do país como à qualidade das águas correntes. Juridicamente, o que importa é que GARIMPO e PECUÁRIA constituem atividades econômicas em sentido estrito diante do texto da CONSTITUIÇÃO DO BRASIL e seus representantes JAMAIS PODERÃO COMPOR UM CONSELHO PARA PRESERVAR DIREITOS de segmentos minoritários e vulneráveis, principalmente pelas agressões que há muito tempo sofrem dos próprios agentes econômicos em questão.
Aqui, portanto, coloca-se uma questão muito importante, que transcende os debates teóricos e que decorre daquela pergunta que LÉON DUGUIT identificou como questão fundamental do DIREITO PÚBLICO: “Existe uma regra de direito (‘une règle de droit’) superior ao Estado, que seja capaz de impedir a esse de fazer determinadas coisas e de impor outras?” Para o grande publicista francês “se a resposta é não, não existe direito público, pois nenhuma ação, ou omissão, realizada pelo Estado será contra a lei.”
Há, por conseguinte, que se pensar, tendo presente os limites dos POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS diante de tanto racismo e desvirtuamento por parte de segmentos econômicos e de agentes do Estado, no sentido mais profundo do debate e das experiências práticas acerca do CONCEITO DE ESTADO PLURINACIONAL.
As palavras “inviolável”, “inalienável”, “indisponível” e “imprescritível”, tantas vezes escritas no texto da CONSTITUIÇÃO DO BRASIL, e aqui apenas se refere exemplificativamente o art. 231 da nossa Carta Maior, PRECISAM SER LEVADAS A SÉRIO, pelo que o abuso que ora se denuncia merece uma resposta vigorosa do INSTITUTO BRASILEIRO DE ADVOCACIA PÚBLICA e de todos que prezam pela DEMOCRACIA E PELA JUSTIÇA SOCIAL no ESTADO CONSTITUCIONAL E ECOSOCIAL DE DIREITO instituído no Brasil em outubro de 1988.
O § 1º do referido art. 231 da Constituição do Brasil é claro ao conceituar:
“São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus USOS, COSTUMES E TRADIÇÕES.” – destacamos.
Ainda que se invoque o texto dos §§ 3º e 4º do art. 174 da mesma Constituição do Brasil, tais preceitos apenas estabelecem uma preferência pelas cooperativas de garimpeiros diante das grandes mineradoras conferindo PRIORIDADE para aquelas “nas áreas onde estejam atuando”, mas não afastam o sentido de norma especial dos comandos dos artigos 231 e 232 e muito menos retratam USOS, COSTUMES E TRADIÇÕES próprias de culturas e povos e não de atividades econômicas típicas, o que também encontra limite intransponível nos compromissos de justiça social e preservação ambiental da Carta Maior brasileira.
A manifesta e chapada inconstitucionalidade da esdrúxula tentativa do Governo Bolsonaro de equiparar GARIMPEIROS E PECUARISTAS com POVOS INDÍGENAS, QUILOMBOLAS, JANGADEIROS, COMUNIDADES RIBEIRINHAS, dentre outros, definitivamente, deve receber como resposta a legítima postulação de que tais POVOS E COMUNIDADES sejam autorizados a constituírem SERVIÇOS PRÓPRIOS DE SEGURANÇA para a sua autodefesa e preservação de seus territórios.
Observe-se, a tal respeito, que a constituição de POLÍCIA própria PELOS POVOS INDÍGENAS nada mais é que a expressão do sentido pleno e da efetividade do conceito de PLURALISMO, consagrado no inciso V do art. 1º da Constituição do Brasil, em sintonia com outro princípio fundamental da República, a dignidade da pessoa humana. Princípios fundamentais que confirmam o teor do DIREITO FUNDAMENTAL previsto na primeira parte do inciso VIII do art. 5º da mesma CARTA MAIOR: “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política”.
Dignidade da pessoa humana e pluralidade democrática que reclamam um deslocamento de atenção da subjetividade abstrata para os seres humanos reais e suas diversas e legítimas manifestações de identidade e personalidade nas esferas individuais e coletivas. A malícia e a arrogância golpista podem tentar ocultar a desigualdade de fato e as diferenças de poder que comprometem a liberdade de escolha dos indivíduos e dos povos e condenam culturas e saberes tradicionais à extinção, todavia ainda há uma CONSTITUIÇÃO NO BRASIL.
Basta! A civilização e a cultura universal, que nos legaram um dos textos constitucionais mais avançados no mundo como resultado do esforço de superação da barbárie de uma ditadura e de uma cultura colonial escravocrata, não pode mais conviver com tamanho acinte ao ESTADO CONSTITUCIONAL, agora revestido de política oficial. E aqui há que se ter bem presente que a noção de dignidade humana e de inviolabilidade da pessoa se transferem plenamente para a inviolabilidade da natureza. A natureza intocada e intocável transforma-se em sede da dignidade humana, pois é sabido que a dicotomia entre natureza e sociedade não passou de um esforço epistemológico diante do Estado teocrático, dado que o ser humano e a sociedade nunca deixaram de fazer parte da natureza. Trata-se da superação de qualquer resquício de paternalismo e de autoritarismo em favor da liberdade de cada um e de seus respectivos povos e comunidades contra o discurso e a intervenção vantajosa para os detentores do poder econômico, social e político.
Neste sentido, o conceito de ESTADO PLURINACIONAL É PLENAMENTE COMPATÍVEL COM O FUNDAMENTO E O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL FUNDAMENTAL DA PLURALIDADE. Para tal há que se compartilhar o monopólio do uso da força na medida dos direitos dos POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS consagrados na CONSTITUIÇÃO DO BRASIL.
Os direitos constitucionais de liberdade são, por definição, contratradicionais, mas encontram limites justamente para não subverter a própria noção de ordem constitucional, na qual também está contemplado o direito de discordar das normas e valores sustentados pela maioria, mas sobretudo no direito dos POVOS E CULTURAS TRADICIONAIS de exercerem na plenitude o direito de vida comunitária conforme seus “USOS, COSTUMES E TRADIÇÕES”.
Trata-se de uma ordem jurídica que conforma, no dizer do constitucionalista norte-americano MICHEL ROSENFELD, uma “identidade constitucional adequada ao papel a um só tempo coercitivo e emancipatório do Direito Constitucional.” Direito Constitucional que deve ser realizado e efetivado por todos nós ou, como bem lembrou outro ilustre constitucionalista contemporâneo, o DIREITO CONSTITUCIONAL será “simplesmente uma nova forma de dominação arbitrária e irracional.”
O INSTITUTO BRASILEIRO DE ADVOCACIA PÚBLICA, aqui representado pelos seus diretores e associados que subscrevem este manifesto, estará atento e não deixará passar mais este abuso!
São Paulo, 16 de dezembro de 2021
Instituto Brasileiro de Advocacia Pública
Associados diretores nacionais:
1. Guilherme José Purvin de Figueiredo (IBAP - Presidente)
2. Celso Augusto Coccaro Filho (IBAP – Vice-Presidente)
3. José Nuzzi Neto (IBAP - Secretário Geral)
4. Sebastião Vilela Staut Junior (IBAP - Coordenador Jurídico)
5. Clério Rodrigues da Costa (IBAP – Coordenador Financeiro)
6. Ricardo Antonio Lucas Camargo (IBAP – Coordenador Internacional)
7. Ana Cláudia Bento Graf (IBAP – Conselho Fiscal)
8. Derly Barreto e Silva Filho (IBAP – Conselho Fiscal)
9. Márcia Diegues Leuzinger (IBAP – Conselho Fiscal)
9. Sanny Japiassu (IBAP – Conselho Fiscal)
10. Sheila Cavalcante Pitombeira (IBAP – Conselho Fiscal)
Associados regulares:
1. Paulo Peretti Torelly
2. Sandra V. Cureau
3. Maximiliano Kucera Neto
4. Marie Madeleine Hutyra de Paula Lima
5. Afonso Grisi Neto
6. Alfredo Portinari Maranca
7. Ana Cristina Leite Arruda
8. Ana Cristina Ribeiro Bonchristiano
9. Ana Maria Jara Botton Faria
10. Ana Rita Albuquerque
11. Anamaria Grunfeld Vilaça Koch (IBAP - Conselho Consultivo)
12. Cesar Antonio Alves Cordaro
13. Cíntia Oréfice
14. Daniel Francisco da Silva
15. Danielle de Andrade Moreira
16. David Garcia Gorgues
17. Elizabeth Harkot de la Taille
18. Emanuel Fonseca Lima
19. Erika Bechara
20. Fernanda Menna Pinto Peres
21. Fernando C. Walcacer
22. Filemon Rose de Oliveira
23. Gláucia Savin
24. Hugo Régis Soares
25. Ibraim J. M. Rocha (IBAP - Conselho Consultivo)
26. Isabella Franco Guerra (IBAP - Conselho Consultivo)
27. João Alfredo Telles Melo
28. João Luiz Martins Esteves
29. Johny Fernades Giffoni (IBAP - Conselho Consultivo)
30. José Augusto Garcia de Souza
31. José Damião de Lima Trindade
32. Julia Mattei de Oliveira Maciel
33. Lorene Raquel de Souza
34. Lucas Souto Bolzan
35. Luciola Maria de Aquino Cabral (IBAP - Conselho Consultivo)
36. Márcia Brandão Carneiro Leão
37. Márcia MBF Semer
38. Márcio José de Souza Aguiar
39. Marcos Alcyr Brito de Oliveira (IBAP - Conselho Consultivo)
40. Marialice Antão de Oliveira Dias
41. Marina Motta Benevides Gadelha
42. Marise Costa de Souza Duarte
43. Patricia Fonseca Carlos Magno de Oliveira
44. Patricia Mauro Diez
45. Petruska Canal Freitas
46. Regina Helena Piccolo Cardia (IBAP - Conselho Consultivo)
47. Rui Guimarães Vianna (IBAP - Conselho Consultivo)
48. Sérgio Luiz Pinheiro Sant'Anna
49. Silvana Valladares de Oliveira
50. Themis Aline Calcavecchia dos Santos
51. Thiago Fensterseifer
52. Vanêsca Buzelato Prestes
53. Vanilson Rodrigues Fernandes
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